Desmistificação da teoria do líder da matilha

Foto: Se a Prada se pode deitar no sofá,
eu posso sentar na cama dela :)

O mito do líder da matilha está por todo o lado. Se pesquisarmos no Google “líder da matilha”, obtemos mais de 120 mil resultados. Se pesquisarmos “alpha dog” obtemos mais de 20 milhões de resultados! Há milhões de websites, livros, blogs, programas de televisão, veterinários, treinadores e comportamentalistas que ensinam como usar força e intimidação para dominar o seu cão até à submissão, defendendo que o humano deve ser o líder do cão. Eles estão errados!

A abordagem errónea ao comportamento social canino conhecida como teoria da dominância, é baseada num estudo feito com lobos em cativeiro entre os anos 1930 e 1940 por um comportamentalista animal Suíço, Rudolph Schenkel, no qual o cientista conclui que os lobos de uma alcateia em cativeiro lutam pela dominância e o vencedor é o líder da alcateia.

Má extrapolação
As observações de Schenkel sobre o comportamento de lobos em cativeiro foram erroneamente extrapoladas para comportamento de lobos selvagens e mais tarde para cães domesticados. Nos seus estudos foi postulado que os lobos estavam em constante competição por um nível superior na hierarquia e apenas acções agressivas dos líderes macho e fêmea paravam os competidores.
Outros comportamentalistas, que seguiram os estudos de Schenkel, também estudaram lobos em cativeiro e confirmaram as observações anteriores: quando grupos de lobos, sem qualquer relação entre si , são colocados juntos em cativeiro, eles lutam para estabelecer uma hierarquia.

O problema é que este comportamento não é normal em lobos na natureza. 

David Mech afirmou no seu estudo sobre lobos selvagens (Melch 2000)  que tentar aplicar informação sobre o comportamento de grupos de lobos em cativeiro e sem qualquer relação entre si, à estrutura familiar de alcateias naturais resultou em bastante confusão. Esta abordagem é semelhante a tentar inferir sobre a dinâmica familiar humana através do estudo de humanos em campos de refugiados. O conceito de líder da alcateia, traduzido como um cão líder de uma matilha é particularmente enganosa”.
Graças a estudos de Mech e outros, sabemos que na natureza uma alcateia é uma família que consiste num casal e suas crias com 1 a 3 anos. Ocasionalmente, 2 ou 3 famílias formam um único grupo. As crias crescem e dispersam da alcateia e os únicos membros a longo prazo da alcateia são o casal reprodutor. Em cativeiro, lobos que não têm qualquer relação são forçados a viver juntos durante muitos anos, criando tensão entre machos adultos que não acontece em condições naturais.

Já chega de lobos
Porquê que donos de cães e treinadores de cães começaram a pensar que toda esta informação (e sua má interpretação) sobre comportamento de lobos tem alguma coisa a ver com cães e seu comportamento? A lógica foi qualquer coisa do género “Os cães são descendentes dos lobos. Os lobos vivem em hierarquia nas quais o líder macho agressivo é que manda. Então, os humanos têm que dominar os seus cães de companhia para que eles tenham um comportamento adequado”.

Muito do treino baseado na dominância, com recurso à força e manobras antiquadas como o alpha roll-over, têm a sua origem no treino militar, o que justifica o ênfase no castigo.
Em 1906, Coronel Konrad Most utilizava técnicas de mão pesada para treinar cães do exército Alemão e posteriormente também cães de serviço e da polícia. A ele juntou-se William Koehler após o final da Segunda Guerra Mundial. Koehler também treinou cães do exército antes de se virar para o treino de cães civis. Os seus escritos defendiam técnicas bárbaras que incluíam pendurar e girar o cão como se fosse um helicóptero até ele ficar submisso (até ficar inconsciente, se necessário).
Muitos anos mais tarde, em 1978, surgiram os Monks of New Skete com um novo modelo de treino, afirmando “compreensão é a chave para a comunicação, compaixão e comunhão” com os nossos cães. Isto soa espetacularmente bem! Os Monks foram considerados os mais actuais da altura - mas ao contrário da sua imagem benevolente, eles foram os responsáveis por espalhar e popularizar a manobra alpha roll-over. Revendo as observações sobre lobos, os Monks concluíram que a manobra alpha roll-over é uma ferramente útil para demonstrar a autoridade de uma pessoa sobre um cão. Infelizmente, esta é uma péssima interpretação do comportamento apaziguador que alguns cães oferecem voluntariamente perante outros cães mas que nunca é forçada pelos cães mais fortes.

O nascimento de uma nova era no treino
Quando parecia que o treino de cães tinha estagnado, a treinadora de mamíferos marinhos, Karen Pryor, escreveu o livro “Don’t shoot the dog”. Publicado em 1985, este modesto livro foi concebido como um livro de auto-ajuda para comportamento humano. A autora nunca sonhou que o seu modesto livro, em conjunto com uma caixinha de plástico com uma patilha metálica (clicker), desencadearia uma tremenda mudança de paradigma no mundo de treino canino. Mas aconteceu!

O progresso foi lento até 1993, ano em que o comportamentalista veterinário Dr. Ian Dunbar fundou a Association of Pet Dog Trainers - APDT ( Associação de Treinadores de Cães de Companhia). A visão de Dunbar de um fórum para educação e comunicação entre treinadores, cresceu e tornou-se numa organização que conta com mais de 6000 membros espalhados pelo mundo. Para ser membro da APDT não é necessário ser treinador positivo mas no guia de princípios está escrito “Promovemos o uso de técnicas baseadas nas recompensas, minimizando o uso de técnicas aversivas”.
Este fórum facilitou a rápida difusão de informação sobre treino de cães, melhorado pela criação de uma série de discussões online em que os membros podiam comparar as suas observações e experiências e oferecer ajuda para que todos possam treinar de forma mais amiga do cão, baseada na ciência.
Nesta altura o mercado positivo floresceu, com livros e vídeos de dezenas de trainadores e comportamentalistas profissionais, incluíndo Jean Donaldson, Dr. Patricia McConnell, Dr. Karen Overall, Suzanne Hetts, e muitos outros. 

Com os avanços do treino positivo, aumentou o número  de treinadores profissionais bem formados e informados, abraçando a ciência da aprendizagem e aprendendo e transmitindo informação de qualidade aos seus clientes, sem infringir dor nem castigos severos aos cães.

Um passo atrás
No Outono de 2004, a National Geographic lançou o programa “O encantador de cães”. A teoria da dominância estava de volta como por vingança. Os seus seguidores atribuem tudo à dominância, desde falhas de treino básico até agressividade. Muitos defendem “Muitos cães foram treinados com sucesso durante o século passado com recurso a este modelo de dominância. Não é possível que todos aqueles treinadores estivessem errados”.
De facto, métodos baseados na força (castigo positivo) são uma parte do condicionamento operante e, tal como as décadas provam, esses métodos podem funcionar. Esses métodos são especialmente eficazes para acabar com comportamentos indesejados, ou seja, convencer um cão que não é seguro oferecer comportamentos se nada lhe for pedido. Isso funciona com alguns cães. Com outros não!

A personalidade dos cães situa-se num espectro contínuo, desde muito vulnerável até muito duro. Os métodos antiquados e severos podem efectivamente suprimir comportamentos em cães que se situem no centro deste espectro - aqueles que são flexíveis o suficiente para tolerar o castigo mas não suficientemente duros para lutar contra. Na teoria da dominância, se um cão luta para se defender, o humano tem que lutar com mais força até o cão se submeter, de forma a afirmar que o humano é o líder. O problema é que por vezes eles não se submetem e o nível de violência aumenta ou eles submetem-se no momento e podem reagir agressivamente da próxima vez que o humano fizer algo violento ou inapropriado para o cão. Sob a teoria da dominância, esses cães são geralmente classificados como incorrigíveis, impróprios para a sua função ou não seguros para a sua família  - são condenados à eutanásia. Se nunca tivessem sido mal tratos, possivelmente nunca teriam sido agressivos.
Do outro lado do espectro estão os cães muito vulneráveis que são facilmente afectados psicologicamente por uma comportamento assertivo induzido por um treinador dominante. Estes cão desligam (shut down) facilmente porque ficam com medo e não confiam nos humanos do seu mundo que são violentos de forma injusta e imprevisível.

Muitos treinadores em transição (aqueles que treinavam com métodos antiquados e agora têm orgulho em promover o treino positivo) dirão que treinaram com sucesso muitos cães com os métodos antiquados. Contudo, a maioria gostaria de voltar atrás, de ter a oportunidade de ter uma melhor relação com todos aqueles cães, de lhes dar uma vida de confiaça e  mais tranquila...

Nós não somos cães e eles sabem disso!
Finalmente, assumir que os cães nos consideram como membros da matilha é absurdo. Eles sabem que a maior parte de nós não sabe ler e interpretar a sua subtil linguagem corporal. Somos também incapazes de imitar essa linguagem. Está na altura dos humanos desistirem de tentar ser cães e aceitar que nós somos humanos a co-existir com outras espécies - e que somos mais bem sucedidos se o fizermos pacificamente.
Grupos sociais de sucesso funcionam devido ao respeito mútuo e voluntário e não a dominância agressivamente forçada. Rituais de linguagem corporal têm o objectivo de evitar conflitos e confrontos. Se observarmos um grupo de cães a interagir vamos ver que eles se submetem uns aos outros inúmeras vezes. Nem sequer é sempre o mesmo cão o submisso. Por exemplo:

  • Cão B: hey, eu gostava de ir primeiro.
Cão A: está bem, à vontade!
Cão B passa primeiro pela passagem estreita.

  • Cão A: quero esse osso.
Cão B: Claro. Não me apetece roer aora.
Cão A fica com o osso.

Hierarquias sociais existem em grupos de cães domesticados e em várias espécies, incluindo humanos, e a hierarquia pode ser fluída. Como descrito anteriormente, um cão pode ser mais assertivo num encontro e mais defensivo no encontro seguinte, dependendo daquilo que está em jogo e de como cada cão se sentem em relação ao possível desfecho. Há várias subtilezas no funcionamento dessas hierarquias e na forma como os seus membros comunicam - em qualquer espécie.

Actualmente, treinadores bem formados estão conscientes que as interações entre humanos e cães não são influenciadas por posições sociais mas sim pelo reforço. Comportamentos que são reforçados são repetidos e tornam-se mais frequentes. Se um cão tem um comportamento inadequado, não é por tentar ser dominante mas sim porque esse comportamento é reforçado de alguma forma. Por exemplo, o cão salta para o sofá porque é um sítio quente e confortável para dormir e não porque quer dominar os humanos. Se lhe der uma cama mais confortável do que o sofá, certamente ele deixará de subir para o sofá.É fundamental descobrir o que reforça os comportamentos indesejados e eliminar esses reforços oferecendo uma alternativa. A alternativa deve ser sempre reforçada. Desta forma vai descobrir uma óptima forma de comunicar com o cão e vai ter uma melhor relação com ele, baseada em amor, companheirismo, e respeito mútuo.

Este artigo é uma tradução (com ligeiras adaptações) feita por Bruna Oliveira, BabusCão. O artigo original em Inglês está publicado no site the Whole Dog Journal (www.whole-dog-journal.com) com o título “De-bunking the alpha dog theory”.

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